Aprendamos com a Cova da Moura

Aprendamos com a Cova da Moura
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1 ano, 3 meses, 24 dias, após a morte de Nahel Merzouk, jovem franco-argelino de 17 anos, Odair Moniz morreu após ser baleado por um agente da polícia.

No dia 27 de junho de 2023, Nahel que conduzia um carro no bairro de Nanterre, subúrbio norte de Paris, recusou-se a parar perante a polícia. Um dos agentes da polícia utilizou força letal. Nahel morreu dum tiro à queima-roupa. A polícia tentou justificar o uso da arma de fogo sob o pretexto que os agentes corriam risco de vida. A versão foi rapidamente desmentida por um vídeo amador que se tornou viral e que incendiou a sociedade francesa. Investigações independentes provariam o mesmo, meses mais tarde.

Nas noites que se seguiram, os franceses testemunharam revoltas em bairros empobrecidos e marginalizados de Paris e doutros centros urbanos do país hexagonal.

Impossível não ver paralelos entre estes dois acontecimentos e entre outros ocorridos nos nossos vizinhos europeus e nos Estados Unidos.

No entanto, não basta estabelecer paralelos ou divergências entre estas histórias, é necessário entender o que as similitudes e as diferenças entre estas situações têm a oferecer a um debate sobre o racismo em Portugal e, além disso, sobre a nossa cultura política, a qual é bem distinta da francesa.

Primeiramente, estas situações trazem à superfície o velho debate da legitimidade da utilização da violência como forma de ação política num contexto democrático. Por mais interessante que esse debate possa ser, sobretudo para o entretenimento de cientistas políticos e filósofos, ele pouco traz de útil para a compreensão da revolta social dos bairros periféricos, e muitas vezes, ele desvirtua o que está realmente a ser discutido.

A questão não é se queimar um autocarro ou atirar pedras a uma esquadra da polícia é uma forma legítima de intervenção política. O que é mais relevante é entender por que razão há recurso a este tipo de instrumentos de expressão política. João Teixeira Lopes, sociólogo e professor na Universidade do Porto, numa entrevista ao Público de dia 23 de outubro, faz uma análise pertinente e avança hipóteses plausíveis sobre o recurso a estes modos de ação. Estabelecendo paralelos com França, e mobilizando uma artilharia intelectual de origem francesa, o sociólogo afirma que a segregação destas populações de origem imigrante, empurradas para as periferias dos centros urbanos, com falta de acesso a serviços públicos, é um elemento a ter em conta.

Tal como Nanterre, a Cova da Moura é no nosso imaginário coletivo um lugar de precaridade social, de miséria e de criminalidade. Tal como em Nanterre, as populações que vivem na Cova da Moura não estão integradas nos processos políticos, sendo menosprezadas pelo Estado, num país que tanto depende da sua mão de obra. Como alguém que cresceu na margem sul, mesmo se num município e num contexto muito mais favorecido, eu não posso deixar de entender aqueles que sentem que existem para servir uma cidade que não lhes dá o devido valor. Contrariamente a estas populações, mesmo se eu nasci e cresci na periferia da AML, eu tive a oportunidade de estudar, e de estudar no estrangeiro, graças a um Estado social que não me falhou. Com essas oportunidades, vieram também as ferramentas de me exprimir politicamente através de meios que são considerados como legítimos.

No entanto, isso não é a realidade da maior parte das populações da periferia de Lisboa. Elas não só nasceram na periferia com todas as implicações inerentes a essa posição, como o Estado lhes falhou sistematicamente, privando-as de oportunidades. Sobretudo em comunidades de origem imigrante, onde a estigmatização social e racial é extremamente elevada e onde os contactos com as autoridades e administração pública são marcados pela desconfiança mútua e, por vezes, pela violência.

“Mas nem todos os polícias são assim?”, ouve-se no debate mediático. Tal afirmação é, na minha opinião, um mal-entendido banalizado. Eu cresci numa família com um agente da autoridade, o qual, eu não tenho a menor dúvida, seria incapaz de cometer tal ato, de tal forma violência.

Todavia, isso não me impede de reconhecer que em Portugal, como em França, como em vários outros países do mundo, há uma forma de racismo estrutural enraizado a todos os níveis do Estado, incluindo nas polícias. São inúmeros os momentos em que eu presenciei a polícia alemã e francesa tratar de forma abusiva não só imigrantes de fora da Europa, quanto cidadãos alemães e franceses de passado migratório, sobretudo em autocarros e comboios que atravessam a suposta Europa da livre circulação. Nesses momentos, esses mesmos agentes da polícia ora me ignoravam ora me trataram de forma neutra, ou ainda, por vezes, mesmo de forma simpática. A única coisa que me diferenciava dos demais, era o facto de eu ser um cidadão da UE ou o facto de eu ser branco. Ou seja, afirmar que há um problema de racismo estrutural na polícia não é afirmar que todos os polícias estão prontos a disparar à queima-roupa sobre uma pessoa não armada devido à cor da sua pele. Afirmar que há uma forma de racismo estrutural é reconhecer que os critérios e os modos de funcionamento das autoridades são pautados por múltiplas formas de discriminação.

Noutro ponto, estas revoltas nos subúrbios lisboetas abrem portas a outros debates que não só o do racismo estrutural em Portugal, por mais essencial que este o seja. A sociologia e a ciência política têm uma longa tradição de estudo das formas não convencionais de intervenção política, como é o caso destas revoltas. Charles Tilly, investigador estado-unidense na área da História e da Sociologia, propôs vários instrumentos de análise que, na minha opinião, continuam a ser pertinentes, entre eles a ideia de recursos militantes e de repertório de ação coletiva.

Há várias décadas que Portugal não conhece formas de revolta popular marcadas pelo recurso à violência. O que motivou então os manifestantes a utilizar este recurso? Foi uma das primeiras questões que me perguntei enquanto lia as primeiras notícias, na minha residência em Berlim, relativamente longe da minha cidade natal e dos acontecimentos desta semana. Em conversa com amigos residentes em Lisboa, uma das quais é uma ativista do movimento Vida Justa, várias hipóteses surgiram. Por um lado, numa era de redes sociais e de globalização, é plausível que haja formas de interação direta entre pessoas de meios sociais similares que vivem em vários países diferentes.

Noutros termos, terão os manifestantes da Grande Lisboa sido inspirados pelos da capital francesa ou os de vários centros urbanos dos EUA? Esse tipo de transferência de recursos é comum numa secção da vanguarda militante, oriundas de meios intelectuais privilegiados, extremamente cosmopolitas e beneficiários da integração europeia, que se articulam com outros movimentos europeus e internacionais. São exemplos a Greve Climática Estudantil e a Climáximo, que utilizam um repertório idêntico ao dos seus homólogos europeus, numa lógica de mimese. Todos temos memória das ações baseadas em atirar tinta verde para cima de responsáveis políticos. Será que o mesmo estará a acontecer noutros meios sociais?

Já Angela Davis, militante e pensadora política estado-unidense, nos alertou para esse tipo de conexões entre, por exemplo, militantes antirracistas estado-unidenses e palestinos, em que estes dois grupos se auxiliavam fazendo recurso a redes sociais. Além disso, o fenómeno da migração potencializa estas conexões internacionais, sendo que a diáspora forma redes de auxílio transnacionais, muitas baseadas em laços pessoais e familiares. Por outro lado, estas populações, muito delas oriundas dos chamados PALOP ou doutros países colonizados, podem ter herdado a cultura contestatária que levou à independência dos seus respetivos países da origem, face ao domínio colonial português ou doutros países europeus. Talvez a resposta seja um misto destas duas suposições. Cabe aos jornalistas e investigadores de fazerem esse trabalho de campo.

Esta última hipótese leva a um dos elementos finais da comparação que poderá ser feita entre as revoltas de Nanterre e as da Cova da Moura. O imaginário político francês é o da revolução, ao ponto que esse imaginário é aceite não só pelos franceses, mas pelos seus vizinhos. Muitos de nós temos uma imagem dos franceses como eternos descontentes, prontos a barricar uma rua ou a entrada duma faculdade pelo mínimo atendado aquilo que eles consideram serem os seus justos direitos. De facto, em França, é banal o recurso à manifestação como forma de expressão política, e mesmo à manifestação violenta, as chamadas manifs sauvages, protestos não declarados, e, portanto, ilegais, que sucedem ou precedem a manifestação oficial. Este tipo de manifestação é descentralizado, com vários polos por toda a cidade, tem recurso à atos considerados como violentos e ao confronto direto com a polícia. Muitas vezes, os militantes não são necessariamente oriundos de meios desfavorecidos, e muitas vezes os motivos da manifestação estão longe de estarem relacionados à segregação racial.

As últimas manifestações de grande magnitude em França, que começaram no início de 2023, portanto antes das revoltas de Nanterre, tinham como objetivo lutar contra o novo sistema de reformas e pensões que o Presidente Macron quis impor contra a vontade da maioria dos franceses, nomeadamente contra a subida da idade da reforma dos 62 aos 64 anos. Por outras palavras, os revoltosos de Nanterre não tiveram de ir muito longe para encontrar o seu reportório de ação coletiva, ainda mais que há antecedentes que datam de 2005, momento de grandes manifestações nas periferias das cidades francesas. Sem sequer mencionar os coletes amarelos ou o Maio de 68.

Por outro lado, o imaginário político português não é um imaginário de revolução violenta. A narrativa sobre o 25 de Abril salienta, por vezes em detrimento da factualidade, o seu caráter pacífico. Os anos que se sucederam, nomeadamente o PREC, onde houve recurso à ação violenta, são tidos como uma exceção e um produto da instabilidade política, do calor da época. Desde aí, poucas manifestações, pacíficas ou não, abalaram a sociedade portuguesa, com exceção feitas à Geração à Rasca ou, de forma mais modesta, às manifestações estudantis de 2019.

Também é exceção a classe dos professores, e algumas profissões no domínio da saúde, grupos sociais e profissionais que mostraram, ao longo das últimas décadas, a sua capacidade de se opor a várias políticas públicas. No entanto, na sua maioria, a nossa cultura política é marcada pelo uso excecional de meios não convencionais de contestação. Noutros termos, há uma certa passividade e mesmo apatia política da população, que não materializa o seu desagrado por certas políticas públicas numa ação contestatória concreta, a qual, repito, não tem de fazer recurso à violência. O que pode ser considerado como uma perda para a democracia, de considerar que a única forma da população se exprimir é pelos canais institucionais, nomeadamente o voto.

Ora, será que os revoltosos das margens de Lisboa estão a dar oportunidade de quebrar esse imaginário? Será que outros grupos sociais, em vez de seguirem a demagogia populista da extrema-direita, que se limita a polarizar a sociedade para fazer triunfar a sua agenda, não deveriam aproveitar a oportunidade para mostrar solidariedade com as populações segregadas de Lisboa? As classes baixas e médias portuguesas não racializadas e não originarias da imigração, os jovens, os trabalhadores, também têm revindicações legítimas que, claramente, têm sido ignoradas pelos responsáveis políticos. Melhores serviços públicos, salários dignos e poder de compra, o direito à habitação, à saúde e à educação, proteção contra a gentrificação e contra a especulação imobiliária.

Em vez de sucumbir a uma forma de alteridade, de “nós não somos eles”, proponho que “nós queiramos ser eles”. Portugueses ou cidadãos residentes em Portugal que recusam serem vítimas de violência e de marginalização pela cor da sua pele ou por viverem em certo bairro. Pessoas que vão para a rua manifestar a sua revolta perante o Estado e o estado das coisas. Estou convencido que é desses portugueses que Portugal precisa.


Biografia:

Artur Ramos

Estudante do ensino superior

Residência atual: Berlim, Alemanha

Licenciado em Ciências Políticas pelo Sciences Po Estrasburgo. Mestrando em Literatura Francesa e Comparada na Universidade Sorbonne Nouvelle em Paris e na Universidade Humboldt em Berlim.

Interesses: política, cultura, literatura, integração europeia, estudos de género e pós-coloniais, França, Alemanha, Brasil.

Contacto: artur.ramos.p@outlook.com


Fontes:

Davis, Angela. A Liberdade é uma Luta Constante – Ferguson, a Palestina e as Bases de um Movimento. Antígona, 2020.

Faria, Natália. «Distúrbios em Lisboa: “Para muitas destas populações, esta é a única forma de existirem no espaço público”». PÚBLICO, 23 de outubro de 2024. https://www.publico.pt/2024/10/23/sociedade/entrevista/disturbios-lisboa-populacoes-unica-forma-existirem-espaco-publico-2109077.

Ferreira, Marta Leite & Lusa. «Quarta noite de tumultos fez 18 incêndios e o apedrejamento de um autocarro e dois carros da polícia». PÚBLICO, 25 de outubro de 2024. https://www.publico.pt/2024/10/25/sociedade/noticia/autocarro-apedrejado-bairro-boavista-reforco-policia-lisboa-arredores-2109381.

Halissat, Ismaël. «Affaire Nahel Merzouk : une expertise écarte le danger pour les policiers au moment du tir». Libération, 11 de julho de 2024, sec. Police / Justice. https://www.liberation.fr/societe/police-justice/affaire-nahel-merzouk-une-expertise-ecarte-le-danger-pour-les-policiers-au-moment-du-tir-20240711_WJZ5GHY4LFD35GFDKVWPSMEIIE/.

Henriques, Joana Gorjão. «Quatro testemunhas dizem que Odair Moniz não tinha arma, nem tentou agredir polícias». PÚBLICO, 25 de outubro de 2024. https://www.publico.pt/2024/10/25/sociedade/reportagem/quatro-testemunhas-odair-moniz-nao-arma-tentou-agredir-policias-2109358.

LIBERATION. «Mort de Nahel : l’enquête sur l’adolescent tué par un policier à Nanterre, officiellement terminée». Libération, 7 de agosto de 2024, sec. Police / Justice. https://www.liberation.fr/societe/police-justice/mort-de-nahel-lenquete-sur-ladolescent-tue-par-un-policier-a-nanterre-officiellement-terminee-20240807_4XCJUVTFRFDGPNVDUFSENC7WRQ/.

Tilly, Charles. «Les origines du répertoire d’action collective contemporaine en France et en Grande-Bretagne». Vingtième Siècle. Revue d’histoire 4, n.o 1 (1984): 89–108. https://doi.org/10.3406/xxs.1984.1719.

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