Uma receita de doce supostamente feita num convento de mulheres no século XVIII e guardada na Biblioteca Nacional pode, afinal, tratar-se de uma falsificação que deu suporte histórico à ideia dos doces conventuais, concluiu uma investigação científica.
O “Livro de receitas de doces e pratos diversos deste convento de Santa Clara d’Évora”, datado de 1729, é um pequeno manuscrito com apenas dez receitas que está desde 1959 no acervo da Biblioteca Nacional, que o adquiriu num leilão. , e que foi diversas vezes utilizado para dar suporte histórico à ideia e conceito da doçaria conventual e aos mitos a ela associados.
O manuscrito era uma das poucas receitas conhecidas do século XVIII, esta com a particularidade de possuir uma frase que apontava para um certo sigilo das receitas conventuais: “Este livro não será dado a ninguém que não seja membro desta casa, nem por empréstimo, por afetar os lucros da produção de doces que são feitos nesta casa.
A sua autenticidade é agora posta em causa por uma investigação cujos resultados preliminares foram apresentados terça-feira, numa conferência na Biblioteca Nacional, pela professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Isabel Drumond Braga e pela professora da Escola Superior de Educação de Coimbra João Pedro Gomes, ambos com trabalhos académicos sobre a história da alimentação e, em particular, da doçaria portuguesa.
Isabel Drumond Braga já tinha usado aquele manuscrito para um livro de receitas conventuais e, já em 2015, pensou, “mas não disse”, que haveria “algumas coisas” naquele pequeno livro de receitas que lhe pareciam estranhas, mas que, na época, entendiam “como pioneiros e não como fraude”.
Mais recentemente, João Pedro Gomes, ao realizar o seu doutoramento dedicado à história da doçaria portuguesa, do qual Isabel Drumond Braga foi uma das codiretoras, ousou questionar a autenticidade do documento.
“Ele conseguiu ser mais radical do que eu e numa boa altura fê-lo”, disse o historiador à agência Lusa.
Depois de defenderem a tese de João Pedro Gomes, em 2023, que, entre outras questões, sustentava que a ideia da doçaria conventual é um “mito construído”, os dois investigadores propuseram este ano um trabalho mais detalhado e fundamentado para questionar a veracidade desse manuscrito.
João Pedro Gomes, que conseguira relacionar aquele documento com outros manuscritos existentes entre os séculos XVI e XVIII, entendeu que a prescrição era “completamente dissonante”, com elementos que pareciam extemporâneos e outros que a tornavam, no mínimo, peculiar. .
O manuscrito continha apenas dez receitas e todas eram doces (os manuscritos conventuais conhecidos são maiores e mais diversificados nas suas receitas, contendo também referências a utensílios domésticos).
As expressões utilizadas nas receitas levantam suspeitas
Porém, o que revelou o anacronismo e aprofundou as dúvidas dos pesquisadores sobre sua autenticidade foram as expressões utilizadas nas receitas.
Na receita há referências a “cacau em pó”, quando o cacau só era usado em barras e apenas para bebidas, “ralador de batata” ou “rolo amassador”, também palavras fora de sua época (o rolo era chamado de canudo).
Existem também outras expressões anacrônicas, como “pilha de açúcar” ou “xícara”, palavra que já existia, mas não era usada na época como unidade de medida, o mesmo acontecia com “colher de sopa”.
Os pesquisadores buscaram diversas formas de verificar a autenticidade do manuscrito, como, por exemplo, verificar se a tinta poderia aumentar as dúvidas, mas essa hipótese foi descartada (a tinta era ferrogálica, usada há séculos).
Com esta ponta solta, os dois investigadores recorreram ao trabalho da especialista em paleografia (estudo de manuscritos antigos), Susana Tavares Pedro, que concluiu que o livro de receitas terá sido elaborado na segunda metade do século XIX, altura em que o manuscrito foi publicado. datado de 1729.
“É uma discrepância extremamente marcante”, destacou o historiador.
Ao analisar o rendimento, surgiram outras questões.
Há três que são consideradas especialidades de outros conventos, “o que por si só é estranho”, e vários aparecem mais tarde, em livros impressos em 1780 e 1788, quando o processo se inverteu, destacou João Pedro Gomes.
Entre essas receitas, há uma que chama a atenção: a de cachos de ovos (que aparece no livro “Cozinha Moderna”, do cozinheiro da rainha Maria I, Lucas Rigaud, em 1780).
“Os Egg Bunches de Lucas Rigaud são escritos no estilo de Lucas Rigaud. “Como é possível que alguém escreva exatamente como Lucas Rigaud e Lucas Rigaud só apareça 60 anos depois?”, questionou o professor.
No entanto, há um fato que realça ainda mais dúvidas sobre a autenticidade do manuscrito.
Isabel Drumond Braga consultou os registos das freiras do Convento de Santa Clara de Évora e encontrou no manuscrito duas informações importantes: as receitas teriam sido compiladas por ordem da abadessa Maria Leocádia do Monte do Carmo e o registo foi feita pela secretária Inês Maria do Rosário.
O problema é que, segundo a documentação do convento, não existe nenhuma abadessa com esse nome em 1729 nem nenhuma escriba chamada Inês Maria do Rosário durante todo o século XVIII.
“Existe uma certa María Leocádia do Monte do Carmo, sim, mas ela professou em 23 de janeiro de 1783, foi notária entre 1799 e 1807 e abadessa entre 1808 e 1811”, disse o historiador.
O documento, antes de integrar o acervo da Biblioteca Nacional, esteve na posse de Francisco Lage, que pertencia à Secretaria de Propaganda Nacional do Estado Novo.
Os investigadores não acreditam que Francisco Lage tenha sido o autor da falsificação, mas sim que comprou o livro pensando que seria autêntico.
“Parece-nos que ele foi enganado e que a Biblioteca Nacional, quando a adquiriu, foi ingénua, como eu e tantos outros fomos durante muito tempo”, disse Isabel Drumond Braga.